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Consultores Americanos por trás do flerte com a morte em SP

A reabertura do comércio nos Estados Unidos causou um aumento nos novos casos de coronavírus, com os governos locais já revertendo a decisão. Mesmo assim as principais cidades do Brasil estão seguindo esse exemplo.

O interesse do investidor teve prioridade sobre a saúde da população. Essa imitação brasileira à resposta dos EUA à pandemia de Covid-19 é o reflexo da perda da tomada de decisões políticas brasileiras para empresas estrangeiras como o Boston Consulting Group, que está assessorando o governo do estado de São Paulo sobre a pandemia, apesar de não ter expertise no assunto.

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Depois de Nova York, São Paulo tem o segundo maior número de casos confirmados de coronavírus no mundo. Com uma população de 44.04 milhões, atualmente o estado possui 302.000 casos confirmados e 15.351 mortes. Os totais estimados são muito maiores, e essa subnotificação reflete não apenas a falta de testes, mas a ocultação intencional de dados.

Com 1,5 milhão de casos confirmados e 62.045 mortes, o Brasil ainda precisa não chegou ao pico de sua pandemia e o alívio das medidas de bloqueio parece perigosamente prematuro.

A cidade e o estado de São Paulo foram os primeiros epicentros brasileiros do Covid-19. Eles também foram os primeiros a implementar medidas de isolamento e quarentena, sob o governo de João Doria e seu ex-vice-prefeito, Bruno Covas. Tanto Doria quanto Covas pertencem ao PSDB neoliberal, tradicionalmente favorecido pelos EUA, que controla o governo do estado de São Paulo há vinte anos.

A resposta à pandemia de São Paulo foi inicialmente vista como racional e bem organizada em comparação com a do regime Bolsonaro em Brasília. O que não foi difícil.

No entanto, algo mudou. Em 27 de maio, Covas anunciou que a taxa de Coronavírus R (reprodução) no município havia caído para 1 e, por sua vez, o governador Doria e sua secretária de desenvolvimento econômico, Patrícia Ellen da Silva, anunciaram o início de um plano para reabrir a economia em todo o estado a partir de 15 de junho, em que os shoppings seriam reabertos, seguido pelo retorno de bares e restaurantes, denominado “Plano São Paulo”.

Especialistas responderam com consternação e alertaram que isso traria uma onda de novas infecções.

Nossos amigos americanos

A decisão de reabertura foi vista como uma vitória para duas empresas americanas que assessoram São Paulo em sua estratégia de pandemia: Oliver Wyman e Boston Consulting Group – um membro do lobby e think-tank de Wall Street: Conselho das Américas  (AS/COA). O presidente do BCG, Rich Lesser, faz parte do Fórum Estratégico e Político de Donald Trump.

O raciocínio por trás da decisão teve problemas óbvios para os familiarizados com a pandemia de São Paulo: os indicadores de controle dependem de pelo menos uma estimativa estatística honesta do número de casos confirmados, e a falta de testes de massa no Brasil significa que não há como calcular a taxa R de forma confiável.

Sergio Praça, numa reportagem da Exame, citou um funcionário do governo estadual sem nome preocupado com os planos de reabrir o comércio, que reclamou que a situação pode piorar na cidade de São Paulo se as diferenças socioeconômicas e de vizinhança não forem consideradas: “A reprodução do vírus começou com a classe alta e está se espalhando rapidamente entre os mais pobres. Por não considerar a transmissão entre as classes, usar um R geral para toda a cidade, cria o risco de uma explosão de casos”, alertou.

No início de maio, Guilherme Benchimol, presidente e fundador do influente fundo XP Investimentos, outro membro corporativo do Conselho das Américas, afirmou que o Brasil estava lidando com o poço da pandemia e se gabava de que o pico entre as classes altas já havia passado.

Acompanhando um pouco os nossos números, eu diria que o Brasil está bem. Nossas curvas não estão tão exponenciais ainda, a gente vem conseguindo achatar. Teremos uma fotografia mais clara nas próximas duas a três semanas. O pico da doença já passou quando a gente analisa a classe média, classe média alta. O desafio é que o Brasil é um país com muita comunidade, muita favela, o que acaba dificultando o processo todo”, disse Benchimol ao jornal O Estado de S. Paulo.

Os comentários de Benchimol refletiram uma visão de que proteger os pobres do Brasil da doença não era uma prioridade dos negócios.

Desde o início do mês, a estratégia de reabertura implementada pelo governo de Doria sofreu reveses como se temia, com muitas regiões tendo que implementar novamente medidas de isolamento mais rigorosas. No início, três regiões estavam sob restrição máxima. E, embora a pandemia ainda esteja longe de ser controlada em São Paulo, o governo decidiu mudar seu plano inicial e propôs a reabertura de academias, teatros, cinemas e salas de concerto para municípios que estão na “fase amarela”. Na primeira versão do chamado “Plano São Paulo”, essas atividades só poderiam retornar na fase final de flexibilidade, a fase azul.

Em 30 de junho, o jornalista Kennedy Alencar escreveu sobre os paralelos com os erros cometidos nos Estados Unidos sendo repetidos no Brasil.

O que acontece nos Estados Unidos serve como um aviso ao Brasil, país que teve sua quarentena abertamente boicotada pelo presidente Jair Bolsonaro e boa parte da sociedade, principalmente por setores da comunidade empresarial. Governados por Donald Trump e Jair Bolsonaro, dois presidentes que negam a ciência e subestimam o uso da máscara em público, os EUA e o Brasil têm o maior número de casos e mortes por covid-19 no mundo. Isso não é coincidência, mas o resultado de respostas incompetentes à maior crise de saúde em 100 anos

Bolsonaro e alguns governadores irresponsáveis ​​copiam grotescamente o pior dos Estados Unidos. Eles cometem crimes contra a saúde pública e merecem ser responsabilizados criminal e politicamente por isso.” Alencar concluiu.

Fundada em 1963, a Boston Consulting Group Inc. é uma empresa global de consultoria de gestão que emprega 21.000 pessoas em mais de 50 países, com receita anual de US $ 8,5 bilhões. Seu think tank estratégico, o BCG Henderson Institute, tem se concentrado no impacto econômico desde os estágios iniciais da pandemia.

O escritório do BCG em São Paulo foi inaugurado em 1997. *

“Três fontes consultadas, de diferentes departamentos, sobre o trabalho do BCG afirmam que a consultoria teve acesso a dados muito detalhados sobre o estado de São Paulo – conhecidos como ‘microdados’, aos quais ninguém fora do governo tem acesso”. escreveu Sergio Praça no Exame.

O envolvimento do BCG no planejamento de São Paulo reflete uma história emergente da Índia, sobre o misterioso papel do BCG na condução das políticas do Ministério da Saúde, apesar de não ter experiência visível na estratégia de controle de doenças.

O uso de tais consultores é visto como sem precedentes em uma pandemia.

Sujata Rao, ex-secretário de Saúde da União, disse à NDTV: “Nunca permitimos que nenhuma empresa estrangeira ou mesmo indiana de consultoria em administração estivesse presente. Sempre trabalhamos com a OMS (Organização Mundial da Saúde). Sempre solicitamos que organizações como o CDC (o Centro de Controle e Prevenção de Doenças do governo dos EUA) viessem nos ajudar. Mas nem no HIV-AIDS nem em nenhuma das epidemias virais que enfrentamos como o H1N1, o H5N1 ou, por falar nisso, o programa da poliomielite já teve algum arranjo onde … empresas de consultoria como essa estariam trabalhando na sala de controle do ministério” ela disse.

Um ex-diretor executivo do Centro Nacional de Recursos de Sistemas de Saúde do governo indiano, T Sundararaman, manifestou preocupação sobre o uso desses grupos de consultoria e sua pesquisa orientada a clientes para políticas públicas: “Existem tantas suposições (nesses modelos). Então, você sabe que seu modelo de negócios deseja mais pedidos do cliente e tende a considerar as suposições favoráveis​​”

Janmejaya Sinha, presidente do BCG Índia, confirmou que há uma equipe do BCG trabalhando no Ministério da Saúde: “Não afirmamos que somos epidemiologistas. Mas certamente sabemos o que devem ser as reformas de crise. Trabalhamos com empresas, governos fazendo isso. E algumas dessas coisas exigem disciplina e, na verdade, boas habilidades de consultoria

O Boston Consulting Group vem assessorando alguns estados dos EUA em suas estratégias de reabertura. Em 13 de maio, foi anunciado que o governador de Connecticut, Ned Lamont, havia contratado o BCG por US$ 2 milhões durante oito semanas de orientação estratégica. Cinco dias depois, foi anunciado que o estado começaria a reabrir imediatamente, contrariando o conselho de especialistas em saúde pública de Yale. Temendo uma segunda onda, o estado finalmente parou seus planos de reabertura de restaurantes, bares e outros comércios e adiou a reabertura das escolas até o outono.

Em Nova York, o governador Cuomo contratou McKinsey para elaborar uma estratégia chamada “à prova de Trump“, com ecos do confronto entre Doria e Bolsonaro.

“Nova política”

O escritório de crise de Coronavírus do governo do Estado de São Paulo é liderado por Patricia Ellen da Silva, que foi consultora da McKinsey por 18 anos. Da Silva foi anteriormente presidente da Optum Brasil, uma gerência de serviços farmacêuticos e subsidiária privada de serviços de saúde do grupo United Health. Embora não seja empregada do BCG, Da Silva é considerada próximo à empresa.

Com entrevistas diárias na televisão colocando-a no centro das atenções, Da Silva foi questionada em uma entrevista à Marie Claire sobre a oposição à reabertura da atividade econômica dos médicos de sua equipe: “Houve consenso, embora nunca haja 100% de concordância. Não há decisão dessa dimensão que nos deixe em uma posição confortável. O que estou aprendendo sobre gestão pública, especialmente no momento em que vivemos, é que é necessário buscar consenso, sim, mas entender que nunca haverá uma zona de conforto.

Formada em Harvard, Da Silva, já está sendo posicionada como um possível candidata ao governo de São Paulo em 2022, se João Doria decidir concorrer à Presidência. Ela, juntamente com a personalidade da televisão Luciano Huck, co-fundou a Agora! – um movimento de renovação política que se define assim: “uma plataforma de lideranças engajadas na discussão, formulação e implementação de políticas públicas no Brasil. É um movimento independente, plural e sem fins lucrativos, que busca qualificar o debate político ao oferecer alternativas de políticas públicas, baseadas em fatos e evidências, para os principais desafios brasileiros.

Agora! representa uma mudança em direção à consultoria da política brasileira. Tanto ela como a RenovaBR de Huck, financiada pelo bilionário Jorge Paulo Lemann, são componentes de um esforço contínuo internacionalmente promovido para moldar um futuro cenário político pós-Bolsonaro e impedir o retorno da esquerda do Brasil ao governo, reembalando a política neoliberal como progressiva, neutra, racional e baseada em evidências.

Essa apresentação, no entanto, está em desacordo com os movimentos de São Paulo para encerrar a quarentena mais cedo, especialmente quando contrastados com o caso da vizinha Argentina, que com uma população de 44,49 milhões semelhante à de São Paulo, sofreu até agora menos de 70.000 casos e 1400 no total. mortes, sob rigorosas medidas de quarentena implementadas pelo governo de Alberto Fernandez – menos de 10% do pedágio atual de São Paulo.

A presidente do comitê econômico do estado de São Paulo é Ana Carla Abrão, consultora da Oliver Wyman e consultora de longo prazo do governador Doria. Enfatizando quão estreitamente associadas estão as forças corporativas que moldam a resposta pandêmica do Brasil, Abrão é casado com Pérsio Arida, presidente do banco de investimentos BTG Pactual, que foi fundado pelo ministro das Finanças de Bolsonaro, Paulo Guedes.

A resposta inicial à pandemia de Guedes, o queridinho de Wall Street, foi afirmar que suas reformas econômicas ultraliberais foram a resposta para a crise, que o próprio Bolsonaro alegou ser pura histeria, quando entrou em confronto com governadores como Doria que contradiziam sua posição.

É notável que esse conflito aberto entre a estratégia federal e estadual pareça ter terminado em São Paulo e no Rio de Janeiro, com um impulso no sentido de um afrouxamento das medidas de isolamento, já fracas, vencendo a batalha.

O Brasil não deixa de ter vozes dissidentes contra essa priorização do interesse dos investidores sobre a saúde pública. Os estados do nordeste continuam a adotar estratégias independentes do pensamento do governo federal, ou da falta dele, liderados pelo grupo de cientistas C4 e pelo Dr. Miguel Nicolelis e estão resistindo a movimentos prematuros para acabar com os bloqueios.

Por algum tempo, a comunidade empresarial dos EUA expressou frustração com as medidas de quarentena no Brasil através de sua mídia. A notória editora pró-Bolsonaro do WSJ, Mary Anastasia O´Grady, reclamou que os bloqueios na gigante sul-americana custariam vidas pela contração da atividade econômica, em vez de ajudar a controlar a doença. Desde então, a Bloomberg se referiu ao Brasil se tornando um “laboratório” para o que acontece quando a doença pode se espalhar efetivamente sem obstáculos.

Isso ocorre no momento em que as notícias inicialmente esperançosas de uma vacina sendo testada na população paulista vieram com a ressalva de que não há garantia de que os brasileiros receberão o salvador acesso a ela.

Como centro econômico e o principal ponto de chegada no sudeste do Brasil, a reabertura prematura de São Paulo pode ter graves consequências para a região, enquanto é improvável que as empresas de consultoria dos EUA por trás da estratégia sejam responsabilizadas.

O Boston Consulting Group foi contatado pela BrasilWire para comentar esta história, com um pedido de informações sobre sua força de trabalho e seu papel no planejamento de pandemia em São Paulo e em outras partes do Brasil.

*Atualização: O Boston Consulting Group finalmente respondeu na segunda-feira, 6 de julho:

“O Boston Consulting Group (BCG) esclarece que realiza um trabalho pro bono para o Governo de São Paulo. Em razão de políticas internas de confidencialidade, o BCG não faz comentários sobre os trabalhos realizados com seus clientes. ”

Colaboração de Nathália Urban.


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