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O Colapso Da Narrativa – A Semana Em Que O Mundo Percebeu O Golpe

A última semana foi crucial na cobertura da imprensa internacional sobre a crise política no Brasil. O discurso sobre a “heroica e imparcial campanha contra a corrupção” (afinal de contas, questionar o combate à corrupção é defender ladrões) e em “manifestações espontâneas, populares e patrióticas contra o governo” (falar na convocação feita pela mídia dominante e no financiamento internacional é negar a realidade) incluiu também leituras mais complexas sobre o que realmente está ocorrendo no país: uma tentativa de golpe de Estado jurídico/midiático em curso.

A mudança coincidiu com a divulgação da lista da Odebrecht, um documento com o nome de mais de 300 políticos que teriam recebido propina da empresa (além de doações legais de campanha). A Rede Globo e a mídia de direita mantiveram o foco na presidenta Dilma e no ex-presidente Lula, mas a estratégia ficou insustentável: ambos não aparecem no documento. Ao perceber seu possível erro, o juiz Sérgio Moro voltou atrás e resolver decretar o sigilo da lista, após vazá-la. Moro simplesmente ignorou a existência da internet.

Também nesta semana, um grupo de estudantes financiados por instituições internacionais fez um escracho na casa da família do juiz Teori Zavaski, do Supremo Tribunal Federal. Teori havia mandado de volta a Brasília as investigações sobre Lula conduzidas por Moro. A cobertura internacional omite de forma flagrante o financiamento estrangeiro para grupos que protestam contra o governo. Apenas o PRI fez matéria sobre o assunto há alguns dias. É vergonhoso que esta informação, fundamental para entender a situação política do Brasil, não tenha aparecido em qualquer jornal de língua inglesa nos últimos 12 meses.

O vento sopra em outra direção

Dia 18 de março, a revista digital The Intercept publicou um artigo sobre a crise, assinado por Glenn Greenwald, jornalista americano estabelecido no Brasil e vencedor do prêmio Pulitzer pela série de matérias sobre Edward Snowden e suas revelações sobre o sistema de vigilância dos Estados Unidos. Em “O Brasil é engolido pela corrupção da classe dominante – e por uma perigosa subversão da democracia”, Greenwald escreve:

“Ontem, Chuck Todd, da NBC News, retuitou Ian Bremmer (do Eurasia Group) descrevendo os protestos anti-Dilma Rousseff como “O Povo contra a Presidente” – um tema fabricado, condizente com o que é noticiado por grupos midiáticos brasileiros antigoverno, como a Globo”.

“Essa narrativa é, no mínimo, uma simplificação radical do que está acontecendo e, mais provavelmente, uma propaganda feita para minar um partido de esquerda há muito mal visto pelas elites políticas dos EUA. A caracterização dos protestos ignora o contexto histórico da política no Brasil e, mais importante, uma série de questões críticas: quem está por trás dos protestos, quão representativos eles são em relação à população brasileira e quais são seus verdadeiros interesses?”

“Acreditar que as figuras políticas agindo a favor do impeachment de Dilma estão sendo motivadas por uma autêntica cruzada anticorrupção requer extrema ingenuidade ou ignorância”. 

“O esforço para remover Dilma e seu partido do poder lembram mais uma clara luta antidemocrática por poder do que um movimento genuíno contra a corrupção. E pior, foi armado, projetado e alimentado por várias forças que estão enfiadas até o pescoço em escândalos políticos, e que representam os interesses dos mais ricos e mais poderosos segmentos sociais e sua frustração pela falta de habilidade em derrotar o PT democraticamente”.

“Em outras palavras, tudo isso parece historicamente familiar, particularmente para a América Latina, onde governos de esquerda democraticamente eleitos têm sido repetidamente removidos do poder por meios não legais ou democráticos”.

Em 19 de março, dia seguinte às manifestações contra o golpe em todo o país, o alemão Der Spiegel publicou um artigo de Jens Glusing, tornando-se o primeiro grande jornal internacional a se referir à situação brasileira como um golpe ou Kalter Putsch (Golpe Frio). Antes, a palavra golpe, se mencionada, sempre aparecia entre aspas na cobertura internacional.

No mesmo dia, a Al Jazeera Inglaterra exibiu uma matéria em que explica o papel da mídia de massa no Brasil, sobretudo da TV Globo, ao incitar o que um dos entrevistados do canal chamou de “golpe suave” no país.

No dia 21 de março, outra leva de matérias de mesmo tom foi publicada em várias partes do mundo. O jornal The Hindu, da Índia, um dos mais influentes de língua inglesa, destacou que golpes não precisam mais vir dos quartéis. A mídia já é o suficiente”.

Alinhada com o Der Spiegel, a correspondente francesa Lamia Oualalou questionou se o que ocorre no Brasil não seria um “golpe frio”. Dave Zirin, editor de esportes da revista americana The Nation e usual comentarista sobre o país publicou a matéria “Como as olimpíadas do Rio podem consolidar um golpe no Brasil”. A própria Brasil Wire traduziu o texto do deputado federal pelo PSOL Jean Wyllys acusando a TV Globo de fazer propaganda dos atos contra o governo, devido à disparidade da cobertura em relação às manifestações de apoio. Na Argentina, o jornal Buenos Aires Herald fez um editorial falando da atuação da Justiça em favor de um golpe no Brasil, traçando inclusive um paralelo com a ação do judiciário argentino no combate à corrupção no país.

Dia 22 de março, novamente a revista The Nation publicou um artigo bastante explicativo assinado pelo especialista em América Latina Greg Grandin. Em Millennials vão às ruas para defender a democracia no Brasil”, ele fala sobre como este grupo se manifestou “dia 18 de março para denunciar que a campanha contra a corrupção na verdade se trata de um golpe”.

No dia 24, a revista americana de esquerda Jacobin publicou um longo artigo do professor Alfredo Saad-Filho, que havia saído na Brasil Wire no dia anterior.

“Com o neoliberalismo, os golpes de Estado passaram a seguir alguns rituais, como ocorreu em Honduras em 2009, e no Paraguai, em 2012”.

“O Brasil possivelmente vai se juntar ao grupo, mas not just now: representantes do grande capital querem restabelecer a hegemonia do neoliberalismo; grupos que já apoiaram a estratégia de desenvolvimento do PT se alinharam; a mídia tem gritado tão alto que ficou impossível pensar com clareza no país; e a maior parte da classe média alta se rebaixou a um ódio fascista pelo PT, pela esquerda, pelos pobres e pelos negros”.

Glenn Greenwald voltou à cena no mesmo dia 24, em entrevista ao programa de televisão americano Democracy Now, que conta ainda com declarações de Lula e Dilma. Todos se referem aos recentes fatos como um golpe, sem meio-termo.

Aqueles que querem eu renuncie evidenciam sua própria convicção sobre o processo de impeachment. Porque, além de tudo, estão tentando dar um golpe de Estado na nossa democracia. Posso garantir que não vou colaborar com isso. Não vou renunciar por nenhum motivo. Não cometi nenhum crime contra a Constituição que justifique a interrupção do meu mandato. Condenar alguém por um crime que essa pessoa não cometeu é a maior violência que se pode cometer contra qualquer ser humano. É uma injustiça brutal. É ilegal. Eu já fui vítima de uma injustiça durante a ditadura militar e eu lutei para não ser vítima novamente, durante a democracia – presidenta Dilma Rousseff

Há uma tentativa de golpe contra a presidenta Dilma. Não há outra palavra para definir isso. E este país não pode aceitar um golpe contra a Dilma. Se eu tivesse que fazer uma última coisa antes de morrer seria ajudá-la a mudar esse cenário, com a decência que o povo brasileiro merece – ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva

O próprio Glenn Greenwald destacou: “infelizmente, o que vocês estão vendo é um poder judiciário – que até agora mostrava ter escrúpulos em sua postura apolítica – trabalhando com os plutocratas do Brasil para conquistar um objetivo que na verdade é uma subversão da democracia. É explorar o escândalo de corrupção para tirar a presidenta Rousseff do poder pelo impeachment, embora não haja bases que fundamentem legalmente sua saída do governo”.

“Como outros países, o Brasil elegeu um governo democraticamente no início dos anos 1960. Mas isso não agradou aos Estados Unidos, por ser um governo de esquerda – não comunista –, que propunha a distribuição de renda pelo bem-estar social, uma política oposta aos interesses capitalistas americanos e às tentativas de interferência do país na soberania brasileira. Em 1964, os militares brasileiros deram um golpe que tirou do poder o governo eleito e impôs ao Brasil uma ditadura brutal que serviu aos interesses dos Estados Unidos e se aliou ao país durante 21 anos. Claro que, neste período, o governo e os militares americanos negaram terminantemente seu papel no golpe, tanto diante do Congresso como da opinião pública”.

“Como aconteceu outras vezes, documentos divulgados anos depois mostraram que os EUA não apenas apoiaram o golpe, como tiveram um papel determinante na conspiração, planejamento e realização, além de sustentar a ditadura durante 21 anos. Os militares brasileiros usaram técnicas de tortura em presos políticos e em cidadãos que lutavam para acabar com a ditadura. Entre eles estava a presidenta Dilma que fazia parte de um grupo guerrilheiro na década de 1970. Ela foi presa sem julgamento e torturada. Documentos revelaram que os EUA e o Reino Unido ensinaram líderes militares brasileiros as melhores técnicas de tortura a serem usadas”.

O jornal francês “Le Figaro” se juntou à lista de publicações críticas aos métodos do juiz Sergio Moro.

Dia 25 de março, a correspondente Shoban Saxena, estabelecida em São Paulo, encerrou a semana com um artigo excelente na The Wire India: “O golpe está no ar: a conspiração para desestabilizar Dilma, Lula e o Brasil”.

Convite cordial

Há um consenso implícito entre correspondentes internacionais de que os Estados Unidos querem o PSDB no poder – correspondente internacional em São Paulo, 22 de junho de 2013.

Uma semana após o aparecimento das primeiras rachaduras na narrativa original, Dilma convocou uma coletiva com seis representantes da mídia internacional. Algumas ausências foram especialmente notadas e talvez façam parte de uma lista ainda mais interessante que a dos convidados:

Washington Post – Não é surpresa, já que representa em formato jornalístico os interesses dos Estados Unidos e do Departamento de Estado americano.

Reuters – A fachada de imparcialidade da agência de notícias no Brasil caiu por terra em 2015, com o “Podemos tirar se achar melhor”. A observação de um editor apareceu sem querer em uma matéria que mencionava o envolvimento do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso com a corrupção na Petrobras.

BBC – Sua ausência causou certa surpresa, mas talvez o governo brasileiro considere a influência da British Petroleum (BP) na crise atual, levando-se em consideração o que está em jogo com a Petrobras caso o golpe se confirme. 

CNN – A ausência fala por si mesma, devido à sua cobertura sempre fraca no Brasil, que chegou a celebrar as manifestações contra o governo. Christiane Amanpour, chefe dos correspondentes internacionais do canal, é conhecida por repetir o discurso do Departamento de Estado americano. 

Nenhum membro da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) foi convidado. Conheça mais sobre a SIP e seu papel político aqui e aqui.

Também não havia na coletiva nenhum meio de comunicação financeiro.

Entre os convidados, estavam o The New York Times (EUA) e o The Guardian (Reino Unido). Embora ambos estejam longe de serem perfeitos em sua cobertura sobre o Brasil, são fundamentais para a imprensa de língua inglesa. Vale conferir a matéria do Guardian, publicada no dia seguinte. 

Le Monde, Die Zeit e El País foram as melhores escolhas da Europa,  pois o Der Spiegel já havia divulgado sua opinião com o artigo “Kalter Putsch (Golpe Frio)”.

Três editoriais britânicos publicados nas últimas semanas – The Economist, Telegraph e The Observer – pediram mudanças no regime de governo brasileiro, seja pela renúncia de Dilma ou por outros meios. Só seria possível imaginar tamanho rebuliço no Reino Unido caso o jornal brasileiro Valor Econômico resolvesse publicar um editorial pedindo a renúncia do Primeiro Ministro David Cameron.

Um dia antes da coletiva com os correspondentes estrangeiros, o presidente Barack Obama visitava a Argentina e também conversava com os jornalistas, ao lado do mandatário local, Mauricio Macri, que recentemente resolveu pagar a divida do país com os fundos abutres americanos. Perguntados sobre a crise brasileira na coletiva, ambos destacaram a necessidade de um “Brasil forte”, mas não mencionaram a presidenta Dilma Rousseff uma única vez.

Uma questão de semântica

Apesar da mudança da narrativa internacional, há um decrescente núcleo de analistas estrangeiros, aparentemente sem nenhum tipo de informação ou ponto de vista privilegiados, que ainda insistem que a situação atual não se trata de um golpe. O principal argumento é que a legalidade do processo de impeachment não caracteriza um golpe de Estado, além da absurda ideia de que “a mídia não influencia a opinião pública” (ambas as linhas de raciocínio também são usadas pela direita brasileira).

O que está em jogo no golpe é muito mais do que um simples esforço a favor do impeachment (até mesmo pela escassa fundamentação legal para o afastamento). Aqueles que negam a narrativa do golpe ficarão do lado errado da história,  provavelmente com uma posição cada vez mais solitária com o passar das semanas e dos meses, haja golpe ou não.

Vale lembrar que o afastamento de Fernando Lugo no Paraguai em 2012 e de Manuel Zelaya em Honduras em 2009 também não foram vistos como golpe pela imprensa internacional à época. No entanto, muitos brasileiros chamaram o que ocorreu no Paraguai de Golpeachment, antes mesmo da suspensão do país do Mercosul, causada justamente pelo afastamento de Lugo. Até os acontecimentos de 1964 no Brasil foram chamados (e ainda são, por setores conservadores da sociedade) de “revolução”. A discussão semântica sobre a definição de um golpe moderno acabou, seja ela “mudança de regime”, “subversão democrática” ou “golpe jurídico-midiático”.

De todos os modos, é um golpe.


Original version in English. Portuguese translation by Maria Martha Bruno.


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